quinta-feira, 18 de julho de 2013

«CONTRARIEDADES», POR CESÁRIO VERDE

No dia 19 de Julho de 1886, falecia o grande poeta português Cesário Verde. Aqui- «POESIA - CESÁRIO VERDE» e ainda aqui- «POEMA DE CESÁRIO VERDE», pode ler mais sobre este autor do séc. XIX. Hoje de sua autoria e com honras neste espaço, o poema «Contrariedades». Boa poética!
Poet'anarquista
Cesário Verde
Poeta Português

CONTRARIEDADES

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente; 
Nem posso tolerar os livros mais bizarros. 
Incrível! Já fumei três maços de cigarros 
Consecutivamente. 

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos: 
Tanta depravação nos usos, nos costumes! 
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes 
E os ângulos agudos. 

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora 
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes; 
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes 
E engoma para fora. 

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas! 
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica. 
Lidando sempre! E deve conta à botica! 
Mal ganha para sopas... 

O obstáculo estimula, torna-nos perversos; 
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias, 
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias, 
Um folhetim de versos. 

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta 
No fundo da gaveta. O que produz o estudo? 
Mais uma redacção, das que elogiam tudo, 
Me tem fechado a porta. 

A crítica segundo o método de Taine 
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa 
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa 
Vale um desdém solene. 

Com raras excepções, merece-me o epigrama. 
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo, 
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho 
Diverte-se na lama. 

Eu nunca dediquei poemas às fortunas, 
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas. 
Independente! Só por isso os jornalistas 
Me negam as colunas. 

Receiam que o assinante ingénuo os abandone, 
Se forem publicar tais coisas, tais autores. 
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores 
Deliram por Zaccone. 

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa, 
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie"; 
E a mim, não há questão que mais me contrarie 
Do que escrever em prosa. 

A adulaçãao repugna aos sentimento finos; 
Eu raramente falo aos nossos literatos, 
E apuro-me em lançar originais e exactos, 
Os meus alexandrinos... 

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso! 
Ignora que a asfixia a combustão das brasas, 
Não foge do estendal que lhe humedece as casas, 
E fina-se ao desprezo! 

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova. 
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente, 
Oiço-a cantarolar uma canção plangente 
Duma opereta nova! 

Perfeitamente. Vou findar sem azedume. 
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas, 
Conseguirei reler essas antigas rimas, 
Impressas em volume? 

Nas letras eu conheço um campo de manobras; 
Emprega-se a "réclame", a intriga, o anúncio, a "blague", 
E esta poesia pede um editor que pague 
Todas as minhas obras... 

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha? 
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia? 
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia... 
Que mundo! Coitadinha! 

Cesário Verde

1 comentário:

Anónimo disse...

Um belo dia de primavera, passeava Cesário Verde pela rua de Santa Catarina, no Porto, e eis senão quando um transeunte o cumprimenta dizendo: adeus ó Cesário Amarelo!
Ao que Cesário Verde retorquiu, continuando o seu calmo passeio: adeus o troca tintas!!!

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