quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

OUTROS CONTOS

(Continuação...)

«Cinco Minutos», por José de Alencar.

Ler por aqui: I- «OUTROS CONTOS»/ II- «OUTROS CONTOS»/ III- «OUTROS CONTOS»/ IV- «OUTROS CONTOS»/ V- «OUTROS CONTOS»/ VI- «OUTROS CONTOS»/ VII- «OUTROS CONTOS».
Poet'anarquista
«Cinco Minutos»
Homem e Cavalo, por Marc Chagall

43- «CINCO MINUTOS»

VIII

DEVOREI toda esta carta de um lanço de olhos.
Minha vista corria sobre o papel como o meu pensamento, sem parar, sem hesitar, poderia até dizer sem respirar.
Quando acabei de ler, só tinha um desejo: era o de ir ajoelhar-me a seus pés e receber como uma bênção do céu esse amor sublime e santo.
Como sua mãe, lutaria contra o destino, cercá-la-ia de tanto afeto e de tanta adoração, tornaria sua vida tão bela e tão tranquila, prenderia tanto sua alma à terra, que lhe seria impossível deixá-la.
Criaria para ela com o meu coração um mundo novo, sem as misérias e as lágrimas deste mundo em que vivemos; um mundo só de ventura, onde a dor e o sofrimento não pudessem penetrar.
Pensava que devia haver no universo algum lugar desconhecido, algum canto de terra ainda puro do hálito do homem, onde a natureza virgem conservaria o perfume dos primeiros tempos da criação e o contato das mãos de Deus quando a formara.
Aí era impossível que o ar não desse vida; que o raio do sol não viesse impregnado de um átomo de fogo celeste; que a água, as árvores, a terra, cheia de tanta seiva e de tanto vigor, não inoculassem na criatura essa vitalidade poderosa da natureza no seu primitivo esplendor.
Iríamos, pois, a uma dessas solidões desconhecidas; o mundo abria-se diante de nós e eu sentia-me com bastante força e bastante coragem para levar o meu tesouro além dos mares e das montanhas, até achar um retiro onde esconder a nossa felicidade.
Nesses desertos, tão vastos, tão extensos, não haveria sequer vida bastante para duas criaturas que apenas pediam um palmo de terra e um sopro de ar, a fim de poderem elevar a Deus, como uma prece constante, o seu amor tão puro?
Ela dava-me vinte e quatro horas para refletir e eu não queria nem um minuto, nem um segundo.
Que me importavam o meu futuro e a minha existência se eu os sacrificaria de bom grado para dar-lhe mais um dia de vida?
Todas estas ideias, minha prima, cruzavam-se no meu espirito, rápidas e confusas, enquanto eu fechava na caixinha de pau-cetim os objetos preciosos que ela encerrava, copiava na minha carteira a sua morada, escrita no fim da carta, e atravessava o espaço que me separava da porta do hotel.
Aí encontrei o criado da véspera.
— A que horas parte a barca da Estrela?
— Ao meio-dia.
Eram onze horas; no espaço de uma hora eu faria as quatro léguas que me separavam daquele porto.
Lancei os olhos em torno de mim com uma espécie de desvario.
Não tinha um trono, como Ricardo III, para oferecer em troca de um cavalo; mas tinha a realeza do nosso século, tinha dinheiro.
A dois passos da porta do hotel estava um cavalo, que o seu dono tinha pela rédea.
— Compro-lhe este cavalo, disse eu, caminhando para ele, sem mesmo perder tempo em cumprimentá-lo.
— Não pretendia vendê-lo, respondeu-me o homem cortesmente; mas, se o senhor está disposto a dar o preço que ele vale.
— Não questiono sobre o preço; compro-lhe o cavalo arreado como está.
O sujeito olhou-me admirado; porque, a falar a verdade, os seus arreios nada valiam.
Quanto a mim, já lhe tinha tomado as rédeas da mão; e, sentado no selim, esperava que me dissesse quanto tinha de pagar-lhe.
— Não repare, fiz uma aposta e preciso de um cavalo para ganhá-la.
Isto deu-lhe a compreender a singularidade do meu ato e a pressa que eu tinha; recebeu sorrindo o preço do seu animal e disse, saudando-me com a mão, de longe, porque já eu dobrava a rua:
— Estimo que ganhe a aposta; o animal é excelente!
Na verdade era uma aposta que eu tinha feito comigo mesmo, ou antes com a minha razão, a qual me dizia que era impossível apanhar a barca, e que eu fazia uma extravagância sem necessidade, pois bastava ter paciência por vinte e quatro horas.
Mas o amor não compreende esses cálculos e esses raciocínios próprios da fraqueza humana; criado com uma partícula do fogo divino, ele eleva o homem acima da terra, desprende-o da argila que o envolve e dá-lhe força para dominar todos os obstáculos, para querer o impossível.
Esperar tranquilamente um dia para dizer-lhe que eu a amava e queria amá-la com todo o culto e admiração que me inspirava a sua nobre abnegação, me parecia quase uma infâmia.
Seria dizer-lhe que tinha refletido friamente, que tinha pesado todos os prós e os contras do passo que ia dar, que havia calculado como um egoísta a felicidade que ela me oferecia.
Não só a minha alma se revoltava contra esta ideia; mas parecia-me que ela, com a sua extrema delicadeza de sentimento, embora não se queixasse, sentiria ver-se o objeto de um cálculo e o alvo de um projeto de futuro.
A minha viagem foi uma corrida louca, desvairada, delirante. Novo Mazzeppa, passava por entre a cerração da manhã, que cobria os píncaros da serrania, como uma sombra que fugia rápida e veloz.
Dir-se-ia que alguma rocha colocada num dos cabeços da montanha tinha-se desprendido de seu alvéolo secular e, precipitando-se com todo o peso, rolava surdamente pelas encostas.
O galopar do meu cavalo formava um único som, que ia reboando pelas grutas e cavernas e confundia-se com o rumor das torrentes.
As árvores, cercadas de névoa, fugiam diante de mim como fantasmas; o chão desaparecia sob os pés do animal; às vezes parecia-me que a terra ia faltar-me e que o cavalo e cavaleiro rolavam por algum desses abismos imensos e profundos, que devem ter servido de túmulos titânicos.
Mas, de repente, entre uma aberta de nevoeiro, eu via a linha azulada do mar e fechava os olhos e atirava-me sobre o meu cavalo, gritando-lhe ao ouvido a palavra de Byron:
— Away!
Ele parecia entender-me e precipitava essa corrida desesperada; não galopava, voava; seus pés, como impelidos por quatro molas de aço, nem tocavam a terra.
Assim, minha prima, devorando o espaço e a distância, foi ele, o nobre animal, abater-se a alguns passos apenas da praia; a coragem e as forças só o tinham abandonado com a vida e no termo da viagem.
Em pé, ainda sobre o cadáver desse companheiro leal, via a coisa de uma milha o vapor que singrava ligeiramente para a cidade.
Aí fiquei, perto de uma hora, seguindo com os olhos essa barca que a conduzia; e quando o casco desapareceu, olhei os frocos de fumaça do vapor, que se enovelaram no ar e que o vento desfazia a pouco e pouco.
Por fim, quando tudo desapareceu e que nada me falava dela, olhei ainda o mar por onde havia passado e o horizonte que a ocultava aos meus olhos.
O sol dardejava raios de fogo; mas eu nem me importava com o sol; todo o meu espírito e os meus sentidos se concentravam em um único pensamento; vê-la, vê-la em uma hora, em um momento, se possível fosse.
Um velho pescador arrastava nesse momento a sua canoa à praia.
Aproximei-me e disse-lhe:
— Meu amigo, preciso ir à cidade, perdi a barca e desejava que você me conduzisse na sua canoa.
— Mas se eu agora mesmo é que chego!
— Não importa; pagarei o seu trabalho, também o incômodo que isto lhe causa.
— Não posso, não, senhor, não é lá pela paga que eu digo que estou chegando; mas é que passar a noite no mar sem dormir não é lá das melhores coisas; e estou caindo de sono.
— Escute, meu amigo…
— Não se canse, senhor; quando eu digo não, é não; e está dito.
E o velho continuou a arrastar a sua canoa.
— Bem, não falemos mais nisto; mas conversemos.
— Lá isto como o senhor quiser.
— A sua pesca rende-lhe bastante?
— Qual! rende nada!…
— Ora diga-me! Se houvesse um meio de fazer-lhe ganhar em um só dia o que pode ganhar em um mês, não enjeitaria decerto?
— Isto é coisa que se pergunte?
— Quando mesmo fosse preciso embarcar depois de passar uma noite em claro no mar?
— Ainda que devesse remar três dias com três noites, sem dormir nem comer.
— Nesse caso, meu amigo, prepare-se, que vai ganhar o seu mês de pescaria; leve-me à cidade.
— Ah! isto já é outro falar; por que não disse logo?…
— Era preciso explicar-me?!
— Bem diz o ditado que é falando que a gente se entende.
— Assim, é negócio decidido. Vamos embarcar?
— Com licença; preciso de um instantinho para prevenir a mulher; mas é um passo lá e outro cá.
— Olhe, não se demore; tenho muita pressa.
— É em um fechar de olhos, disse ele, correndo na direção da vila.
Mal tinha feito vinte passos, parou, hesitou, e por fim voltou lentamente pelo mesmo caminho.
Eu tremia; julgava que se tinha arrependido, que vinha apresentar-me alguma nova dificuldade. Chegou-se para mim de olhos baixos e coçando a cabeça.
— O que temos, meu amigo? perguntei-lhe com uma voz que esforçava por ter calma.
- É que… o senhor disse que pagava um mês…
— Decerto; e, se duvida, disse, levando a mão ao bolso.
— Não, senhor, Deus me defenda de desconfiar do senhor!
Mas é que… sim, não vê, o mês agora tem menos um dia que os outros!
Não pude deixar de sorrir-me do temor do velho; nós estivamos com efeito, no mês de fevereiro.
— Não se importe com isto; está entendido que, quando eu digo um mês, é um mês de trinta e um dias; os outros são meses aleijados, e não se contam.
— É isso mesmo, disse o velho, rindo-se da minha ideia; assim como quem diz, um homem sem um braço. Ah!… ah!…
E, continuando a rir-se, tomou o caminho de casa e desapareceu.
Quanto a mim, estava tão contente com a ideia de chegar à cidade em algumas horas, que não pude deixar também de rir-me do caráter original do pescador.
Conto-lhe estas cenas e as outras que se lhe seguiram com todas as suas circunstâncias por duas razões, minha prima.
A primeira é porque desejo que compreenda bem o drama simples que me propus traçar-lhe; a segunda é porque tenho tantas vezes repassado na memória as menores particularidades dessa história, tenho ligado de tal maneira o meu pensamento a essas reminiscências, que não me animo a destacar delas a mais insignificante circunstância; parece-me que se o fizesse, separaria uma parcela de minha vida.
Depois de duas horas de espera e de impaciência, embarquei nessa casquinha de noz, que saltou sobre as ondas, impelida pelo braço ainda forte e ágil do velho pescador.
Antes de partir fiz enterrar o meu pobre cavalo; não podia deixar assim exposto às aves de rapina o corpo desse nobre animal, que eu tinha roubado à afeição do seu dono, para imolá-lo à satisfação de um capricho meu.
Talvez lhe pareça isto uma puerilidade; mas a senhora é mulher, minha prima, e deve saber que, quando se ama como eu amava, tem-se o coração tão cheio de afeição, que espalha uma atmosfera de sentimento em torno de nós e inunda até os objetos inanimados, quanto mais as criaturas, ainda irracionais, que um momento se ligaram à nossa existência para realização de um desejo.

José de Alencar
(Continua...)

Sem comentários: