segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

OUTROS CONTOS

«Cinzas dos Tempos», por Khalil Gibran.

O escritor libanês Gibran Khalil Gibran, mais conhecido como Khalil Gibran, nasceu em Bicharre, a 6 de Janeiro de 1883. Foi igualmente um importante poeta e pintor, já com referência neste espaço em 10 de Abril de 2012 (efeméride da sua morte), que podem consultar por aqui- «PINTURA - KHALIL GIBRAN». Assinala-se a data do seu nascimento com a publicação do conto «Cinzas dos Tempos», em dois capítulos. Boas leituras!
Poet'anarquista
«Cinzas dos Tempos»
Esboço, por Khalil Gibran

58- «CINZAS DOS TEMPOS»

Capítulo I

Primavera do Ano 116 A.C. 

Já tinha caído a noite, e tudo era silêncio, enquanto a vida se arrastava na Cidade do Sol e as lâmpadas se apagavam nas casas espalhadas entre templos majestosos, ao meio de oliveiras e loureiros. A lua derramava seus raios prateados sobre as colunas de mármore branco, que se erguiam, como gigantes, no silêncio da noite, mantendo guarda aos templos dos deuses e como que contemplando com perplexidade as torres do Líbano, que se erguiam nos cumes, ao longe, das montanhas.

Aquela hora, quando as almas sucumbiam ao peso do sono, Natã, o filho do Sumo Sacerdote, entrou no templo de Ishtar,trazendo, nas mãos trêmulas, uma tocha.

Acendeu as luzes e os incensórios, até que o perfume da mirra e do olíbano alcançasse os últimos recantos; então ajoelhou-se diante do altar crivado de incrustações de ouro e marfim, ergueu as mãos à Ishtar e, com voz embargada e dolorida, exclamou: "Tem piedade de mim, ó grande Ishtar, deusa do Amor e da Beleza. Tem misericórdia e remove as mãos da Morte da minha Amada, eleita da minha alma, por tua vontade. Os remédios dos médicos e dos curandeiros não lhe restauram a vida, nem os encantamentos dos sacerdotes e feiticeiros. Nada resta fazer-se senão a tua santa vontade. Tu és a minha guia e meu auxilio. Tem piedade de mim e ouve a minha prece. Contempla o meu coração e a minha alma sofredora! Poupa a vida da minha Amada, de modo que eu possa regozijar-me com os segredos do teu amor e gloriar-me na juventude, que revela o mistério da tua força e sabedoria. Das profundezas de meu coração imploro a ti, ó suprema Ishtar! Das profundezas da escuridão da noite im­ploro a tua misericórdia! Ouve-me, ó Ishtar! Sou o teu dedicado servo Natã, filho do Sumo Sacerdote Irã, e dedico todas as minhas palavras e atos à tua grandeza, no teu altar.

"Eu amo uma jovem entre todas as jovens e a fiz minha companheira; mas os gênios do mal invejaram-na e sopraram em seu corpo uma aflição estranha e enviaram-lhe o mensageiro da Morte, que se pôs à sua cabeceira, como um espectro faminto, espalmando suas negras asas sobre ela e abrindo as suas agudas garras, prontas para a agarrarem.

"Aqui estou para rogar-te que tenhas piedade de mim e poupes aquela flor que ainda não se regozijou com o Verão da Vida. Salva-a das garras da Morte, de modo a podermos cantar alegremente em teu louvor, queimar incenso em tua honra e oferecer sacrifícios em teu altar, enchendo os teus vasos com óleo perfumado, espalhando rosas e violetas no teu lugar de adoração e queimando olíbano diante de teu sacrário. Salva-a, ó Ishtar, deusa dos milagres, e faze com que o Amor vença a Morte nesta luta da Alegria contra a Tristeza".

Natã então calou-se. Seus olhos inundaram-se de lágrimas e seu coração soltava sentidos suspiros; e depois continuou: "Ai de mim! Meus sonhos se desfizeram, ó divina Ishtar, e meu coração murchou. Revigora-me com a tua misericórdia e poupa a minha Amada!"

Nesse instante um dos seus escravos entrou no templo, correu até Natã e sussurrou-lhe aos ouvidos: "Ela abriu os olhos, senhor, e, olhando ao redor, na sua cama, não o encontrou; então chamou pelo senhor, e vim, por isso, à toda pressa, chamá-lo". Natã partiu apressadamente e o escravo seguiu-o.

Quando ele chegou ao seu palácio, entrou no quarto da pobre enferma, curvou-se sobre a sua cama, segurou-lhe a mão delicada e frágil, e beijou-a nos lábios várias vezes, como que tentando transfundir no corpo dela uma nova vida de sua própria vida. Ela moveu a cabeça nas almofadas de seda e abriu os olhos. Brotou-lhe nos lábios a sombra de um sorriso que era um leve resto de vida do seu corpo gasto, eco do apelo de um coração que parece parar aos poucos. E com uma voz que soava como o choro sumido de uma criança com fome, ao seio de uma mãe exangue, ela disse: "A Deusa chamou-me, ó Vida da minha Alma, e a Morte veio separar-me de ti. Mas não temas, pois a vontade da Deusa é sagrada, e as exigências da Morte são justas. Estou partindo agora e ouço o sussurro de uma alvura que desce sobre mim; mas as taças do Amor e da Juventude ainda estão cheias em nossas mãos, e os caminhos floridos da Vida ainda se estendem, belos, à nossa frente. Estou partindo, meu Amado, na arca do espírito, mas voltarei a este mundo, pois a grande Ishtar trará de volta à vida as almas dos namorados que partirem para a Eternidade antes de gozarem a doçura do Amor e a ventura da Juventude.

"Encontrar-nos-emos, de novo, Natã e beberemos juntos o orvalho da madrugada nas taças das pétalas dos lírios e nos regozijaremos com os pássaros das campinas além das cores do arco-íris. Até então, meu-por-toda-a-vida, adeus!"

Sua voz baixou, e seus lábios tremeram, como a flor solitária ante as lufadas da madrugada. Natã abraçou-a, com lágrimas nos olhos e, ao apertar os seus nos lábios dela, sentiu-os frios como uma pedra. Soltou um grito alucinante e começou a rasgar as suas vestes. E atirou-se ao corpo inanimado, enquanto sua alma em pranto boiava, inconsciente, entre a montanha da Vida e o precipício da Morte.

No silêncio da noite as almas adormecidas acordaram. Mulheres e crianças aterrorizaram-se ao ouvirem um grande estrondo, os penosos gritos e as amargas lamentações que vinham de todos os cantos do palácio do Sumo Sacerdote de Ishtar.

Quando chegou a manhã cansada, seus amigos procuraram Natã, para apresentar-lhe as suas expressões de simpatia; mas disseram-lhes que ele havia desaparecido. Uma quinzena depois o chefe de uma caravana recém-chegada do Oriente informou que havia visto Natã num deserto distante, vagando com um bando de gazelas.

As idades passaram, esmagando, com os pés invisíveis, os vislumbres de civilizações, e a Deusa do Amor e da Beleza tinha deixado a região. Uma deusa estranha e fraca tomou o seu lugar. Ela destruiu os magníficos templos da Cidade do Sonho e demoliu os seus lindos palacios.  Granjas florescentes e férteis prados foram devastados, e nada restou no local, senão ruínas, lembrando às almas sensíveis os gênios de Ontem, e repetindo aos espíritos tristes o eco, apenas, dos hinos de glória. Mas as idades cruéis que esmagaram os feitos dos homens não puderam apagar os seus sonhos nem puderam enfraquecer o seu amor, pois os sonhos e as afeições são eternos, como o Espírito Eterno. Sonhos e afeições podem desaparecer, por algum tempo, acompanhando o sol, quando a noite vem, e as estrelas, quando a manhã desponta, mas, como as luzes dos céus, eles, infalivelmente, voltam.

Khalil Gibran

Amanhã, capítulo II  e conclusão do conto «Cinzas dos Tempos».

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