domingo, 16 de novembro de 2014

ESPECIAL OUTROS CONTOS

«O Turista e o Pescador», por Heinrich Boll.

16 de Novembro de 1985, morre o romancista alemão Heinrich Boll, 67 anos, Nobel da Literatura em 1972, e autor de «A Honra Perdida de Katharina Blum».
Poet'anarquista
«O Turista e o Pescador»
Desafios de Pesca (Tinta da China) - Mário Vitória

330- «O TURISTA E O PESCADOR»

Num porto, numa costa oeste da Europa, um homem pobremente vestido está deitado, tirando uma soneca em seu barco de pesca. Neste momento, um turista chiquemente vestido está colocando um novo rolo de filme colorido em sua máquina fotográfica para fotografar a imagem idílica: céu azul, mar verde com cristas de onda alvas e pacíficas, barco preto, boné vermelho de pescador. Click. Outra vez: click, e como todas as boas coisas vêm em três, uma terceira vez: click. O ruído áspero, quase hostil acorda o cochilante pescador, que sonolento se ergue, sonolento procura às apalpadelas seu maço de cigarros; mas, antes de aquele ter encontrado o que procura, já o solícito turista lhe segurou o maço diante do nariz, não exatamente lhe enfiou o cigarro na boca, porém colocou-lhe na mão, e um quarto click, este do isqueiro, conclui a pressurosa cortesia. Devido àquele excesso — mal mensurável, jamais verificável — de pronta cortesia, surgiu uma situação embaraçosa, marcada por irritação, que o turista tenta transpor através de um bate-papo.

“O sr. vai fazer uma boa pesca hoje.”

Aceno de cabeça do pescador, indicando que não.

“Mas me disseram que o tempo está favorável.”

Meneio de cabeça do pescador, indicando que sim.

“Afinal: o sr. não vai por-se ao largo?”

Movimento de cabeça do pescador indicando que não, nervosismo crescente do turista. Com certeza, a felicidade do homem pobremente vestido importuna-o profundamente. Corrói-lhe a aflição pela oportunidade perdida.

“Oh, o sr. está se sentindo bem?”

Por fim, o pescador passa da linguagem de sinais para a palavra realmente falada.

“Eu estou me sentindo bem,” diz. “Jamais me senti melhor.”

Ele se levanta, estica-se, como se quisesse demonstrar quão atlética era sua compleição.

“Eu estou me sentindo maravilhosamente.”

A expressão facial do turista se torna cada vez mais infeliz, e ele não mais é capaz de reprimir a pergunta que, por assim dizer, ameaça explodir-lhe o coração:

“Mas, então, por que o sr. não se põe ao largo?”

A resposta vem curta e grossa.

“Porque hoje de manhã já o fiz.”

“A pescaria estava boa?”

“Estava tão boa que não preciso ir mais uma vez: peguei quatro lagostas em minhas cestas, 
quase duas dúzias de cavalas…”
         
O pescador, finalmente desperto, quebra o gelo e bate com calma no ombro do turista. A expressão facial preocupada do último parece-lhe uma expressão de inapropriada, na verdade, porém, tocante aflição.

“Eu tenho até bastante para amanhã e depois de amanhã”, diz, a fim de aliviar a alma do estranho. “O sr. fuma um dos meus?”

“Sim, obrigado.”

Cigarros estão sendo postos nas bocas, um quinto click; o estranho, abanando a cabeça em sinal negativo, senta-se na beira do barco, tira a câmera da mão, pois agora precisa de ambas as mãos para dar ênfase à sua fala.

“Eu não quero me intrometer nos seus assuntos pessoais”, diz, “mas apenas imagine: o sr. se põe ao largo hoje uma segunda, uma terceira, talvez até uma quarta vez e o sr. pegaria três, quatro, cinco, talvez até dez dúzias de cavalas… imagine só!”

O pescador acena com a cabeça em sinal afirmativo.

“O sr. se poria ao largo”, continua o turista, “não só hoje, mas amanhã, depois de amanhã, certamente, em todo dia favorável duas, três, quatro vezes — sabe o que aconteceria?”

O pescador acena com a cabeça em sinal negativo.

“O sr. poderia comprar para si um motor, em dois anos um segundo barco, em três ou quatro anos teria talvez um pequeno cúter; com dois barcos ou o cúter, o sr. pescaria muito mais, naturalmente — um dia o sr. teria dois cúters; o sr. iria…”, o entusiasmo embarga-lhe a voz por alguns instantes, “o sr. construiria um pequeno frigorífico, talvez um defumadouro, mais tarde uma fábrica de marinadas, fazer voos circulares com um helicóptero próprio, reconhecer cardumes e dar ordens a seus cúters por rádio. O sr. poderia adquirir os direitos de pesca do salmão, abrir um restaurante de frutos do mar, exportar lagosta sem intermediário diretamente para Paris — e então…”,novamente o entusiasmo embarga a voz ao estrangeiro.

Acenando com a cabeça em sinal negativo, profundamente desolado, já quase privado de suas alegrias consagradas ao lazer, olha para a maré rolando pacificamente para dentro do porto, na qual os peixes não capturados saltam alegremente.

“E então”, diz ele, mas de novo o entusiasmo embarga-lhe a voz.

O pescador bate-lhe nas costas, como se faz com uma criança quando se engasgou.

“O que então?”, pergunta baixinho.

Heinrich Boll

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