domingo, 18 de janeiro de 2015

OUTROS CONTOS

«Seis Tiros à Socapa...», por AC.

«Seis Tiros à Socapa...»
(Um conto por AC)

392- «SEIS TIROS À SOCAPA...»

O velho Sameiro, apesar da idade, era um homem alto e bem constituído e sempre o recordo de espingarda a tiracolo no meio das vinhas à sua guarda. Metia respeito e, confesso, qualquer tique e modo no seu olhar catapultavam-me para trás das calças ou saias de pessoa de confiança que estivesse por perto.

De Verão acontecia com frequência ir em passeio à vinha com a família.

Por vezes ele aparecia sem ser esperado, subitamente, e a sua “boa tarde patrão” cavernosa – as passeatas eram, invariavelmente, pela frescura dos fins de tarde – impelia-me a fugir rua da vinha abaixo, obrigando meu avô a esfalfar-se no meu encalço para conseguir deter-me antes do portão da propriedade, que já uma vez conseguira ultrapassar, indo perigosamente para a estrada.

Meditando hoje sobre o assunto, é óbvio que, então, a sua figura me era sinistra.

Dizia-se que não largava a espingarda de dia e de noite, dormindo mesmo com os dedos nos gatilhos da arma, ainda com receio de uma vingança decretada por ter matado um rapaz que fora, pela calada da noite, roubar uns cachos de uvas num dos sítios da sua jurisdição.

O ti Sameiro sustentou em tribunal ter-lhe parecido ver o rabo de uma raposa que lhe andava a devastar o galinheiro. E assim convenceu o juiz, que não o pai do desgraçado atingido por violenta chumbada que lhe sentenciou uma morte prematura, nunca justificada pelo desvio de uns reles bagos de uva, que não chegou sequer a saborear.

Esta história fazia muitos anos mas o velho guarda vinhas tinha como certo que as vinganças, quase sempre, passam de pais para filhos como um bem precioso da herança e, à cautela, não se separava do fuzil.

Ouvi uma vez alguém criticá-lo por nos receber, com despropósito, de arma a jeito: -o perigoso instrumento ou é para caçar coelhos ou para estar em casa arrumado e fora do alcance de crianças. Ao que ele retorquiu, com a sua voz trovejante: -eu, por causa do dia de amanhã que não sei como virá e estando para aqui sozinho ao Deus dará, prefiro sentir o seu aconchego. E cá tenho os meus cuidados.

Esta conversa foi prenunciadora de um episódio que teve lugar ali pelos dias seguintes.

Um fim de tarde de Verão, ainda quente, fui numa dessas passeatas à vinha com meu avô.

As advertências, como de costume, sucederam-se em crescendo porque eu ia cinquenta metros à frente do irritado avô: -pára quieto, olha que cais, cuidado com os carros, ainda te aleijas... e por aí adiante.

Um lagarto, lagartão para o meu tamanho, cruzou a estrada, vertiginosamente, passando-me por cima das pontas dos dedos que assomavam nas sandálias, fazendo-me retroceder, assarapantado e aos gritos, para a mão segura e protectora que já não larguei. Assim chegámos à vinha.

Passada a entrada, já esquecido do susto pregado pelo réptil e contra mais meia dúzia de advertências, larguei em desenfreada correria na direcção do pequeno pinhal, plantado no termo da vinha, local muito do meu agrado para observar a passarada que ali tinha o hábito de pernoitar. No entanto, a meio da alameda que levava ao pinhal fiquei com os pés colados ao chão pela aparição assustadora do velho Sameiro que se postara à minha frente, cortando-me o caminho.

Sem saber o que fazer, olhei para trás a pedir socorro com expressão aflita desenhada no semblante, já que a língua me ficou presa ao céu-da-boca no único grito que consegui despedir. Três ou quatro pequenas gotas rolaram-me pelas pernas abaixo no preciso momento em que meu avô cumprimentava o guarda. Depois acalmei e fui espinoteando à volta dos dois homens que conversavam com entusiasmo, ignorando a minha presença.

Repentinamente os meus olhos fixaram a espingarda que já me cativara a atenção de miúdo curioso em outras idas à vinha.

–Seria ali, naquela espécie de paus com uma argola à volta, que se dariam os tiros?

A minha mão esquerda voou direita aos gatilhos e quase em simultâneo soaram dois estampidos, seguidos de grande algazarra provocada pelos gritos do velho Sameiro e de meu avô que, estatelados no chão, ainda não sabiam bem o que tinha acontecido.

O mesmo se passando comigo que fui submetido a alguns “maus tratos físicos”, depois de ter galgado o caminho de regresso a casa a uma distância bem medida de meu avô, proibido de voltar a pôr os pés na vinha, assim como de sair de casa nas horas habituais, beber pirolitos e ter acesso a livros da biblioteca itinerante que nos visitava uma vez por semana. E tudo isto até nova ordem.

Não voltei a saber do velho guarda até uma tarde que desejara ir com meu avô naquele passeio que tanto me agradava, agora anulado pelo severo castigo, e o vi chegar esbaforido a casa, encerrando-se, de imediato, com minha avó e minha mãe no escritório.

As frestas da velha porta permitiram-me observar e ouvir o ritmo e gravidade da conversa: -o ti Sameiro tinha aparecido morto junto à entrada da casa da vinha, de borco sobre um lago de sangue, com dois tiros no peito, dados pela sua própria arma.

Esta frase terrível, apanhada no meio de uma conversa com nervos à flor da pele, fez-me dar voltas ao miolo a imaginar todos os passos de um drama e visionar, num relampejo, o que teria acontecido nessa noite.

Assim…, já quase madrugada, o velho Sameiro fora acordado por um resmalhar insistente nas imediações da casa. Por dedução lógica pensara na raposa manhosa com o velho uso de lhe devastar o galinheiro, vício que os bichos desta espécie transmitem de geração em geração.

Teria mesmo dito, em surdina, para si: -a magana há-de pagá-las com dois tiros no lombo.

De trabuco em punho abrira sorrateiramente a porta de casa e, pé ante pé, fizera menção de se dirigir ao galinheiro, onde lhe parecera ver o rabo da raposa em plena orgia alimentar.

Mas nesse instante sentira-se preso pelo pescoço e pelo ventre, com tal força que não conseguia mexer-se. Depois, à sua frente, vira um vulto maior que o seu, que lhe imobilizara as mãos ao mesmo tempo que lhe arrancava a espingarda com violência.

José Sameiro ainda ouvira os estampidos dos dois tiros que lhe atingiam o peito.

A velha vingança fora cumprida.

AC

«Seis Tiros à Socapa...»
(Um conto por AC)

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