quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

OUTROS CONTOS

«S. Paulo», por E.M. Cioran.
«S. Paulo»
S.Paulo escreve as Epístolas/ Valentin Boulogne

396- «S. PAULO»

[Excerto de «A Tentação de Existir]

Nunca o acusaremos o bastante por ter feito do cristianismo uma religião deselegante, por nele ter introduzido as tradições mais detestá­veis do Antigo Testamento: a intolerância, a brutalidade, o provincianismo. Com que indiscrição interfere em coisas que não lhe dizem res­peito, de que nada entende! As suas considerações sobre a virgindade, a abstinência e o casamento são muito simplesmente de causar náu­seas. Responsável pelos nossos preconceitos em religião e moral, fixou as normas da estupidez e multiplicou todas essas restrições que ainda hoje paralisam os nossos instintos.

Dos antigos profetas, não tem nem o lirismo nem o tom elegíaco e cósmico, mas apenas o espírito sectário, e tudo aquilo que neles era mau gosto, tagarelice, divagações destinadas aos cidadãos. Os costu­mes interessam-no sobremaneira. Logo que começa a falar disso, ve­mo-lo vibrar de maldade. Obcecado pela cidade, pela que quer des­truir e pela que quer edificar, dá menos atenção às relações entre o homem e Deus do que às dos homens entre si. Examinemos de perto as famosas Epístolas: não descobriremos um só momento de cansaço e de delicadeza, de recolhimento e de distinção; tudo nelas é furor, ofe­gar, histeria de má qualidade, incompreensão perante o conhecimento, perante a solidão do conhecimento. Intermediários por todo o lado, la­ços de parentesco, um espírito de família: Pai, Mãe, Filhos, Anjos, Santos; nem o menor vestígio de intelectualidade, de conceito definido, de alguém que quer compreender. Pecados, recompensas, contabilidade dos vícios e das virtudes. Uma religião sem interrogações: um de­boche de antropomorfismo. O Deus que esta religião nos propõe faz-me corar; desqualificá-lo constitui um dever: no ponto em que se en­contra, está, de qualquer maneira, perdido.

Nem Lao-Tse nem Buda se reclamam de um Ser identificável; desprezando as manobras da fé, convidam-nos à meditação e, para que a meditação não redunde em vazio, fixam-lhe um termo: o Tao ou o Nirvana. Lao-Tse e Buda tinham uma outra ideia do homem.

Como poderemos meditar se temos de referir tudo a um indiví­duo... supremo? Com salmos, com orações, nada se procura, nada se descobre. É por preguiça que personificamos a divindade que implora­mos. Os Gregos despertaram para a filosofia no momento em que os deuses começaram a parecer-lhes insuficientes; o conceito começa onde o Olimpo acaba. Pensar é deixar de venerar, é insurgir-se contra o mistério, proclamando a sua ruína.

Ao adoptar uma doutrina que lhe era estranha, o convertido imagi­na ter dado um passo na direcção de si próprio quando se limita ape­nas a escamotear as suas dificuldades. Para escapar à insegurança — o seu sentimento dominante —, entrega-se à primeira causa que o aca­so lhe proporciona. Uma vez de posse da «verdade», vingar-se-á sobre os outros das suas antigas incertezas, dos seus antigos medos. Foi o caso desse convertido típico, S. Paulo. Os seus ares grandiloquentes dissimulavam mal uma ansiedade sobre a qual ele se esforçou por triunfar sem o conseguir.

Como todos os neófitos, julgava que pela sua nova fé ia mudar de natureza e vencer essas hesitações que tinha o cuidado de não referir aos seus correspondentes ou ouvintes. O seu jogo já não logra enganar-nos. Mas numerosos foram os espíritos que se deixaram enredar. Era, é certo, numa época em que se buscava a «verdade», em que as pes­soas não se interessavam pelos casos. Se, em Atenas, o nosso apóstolo foi mal recebido, se deparou aí com um meio refractário às suas elu­cubrações, é porque em Atenas ainda se discutia, e o cepticismo, longe de abdicar, continuava a defender as suas posições. As patranhas cristãs não podiam fazer carreira em Atenas; em compensação, seduzi­riam Corinto, cidade duvidosa, rebelde à dialéctica.

A plebe quer ser sufocada por invectivas, ameaças e revelações, por declarações estrondosas: gosta dos faladores. S. Paulo foi um falador — o mais inspirado, o mais dotado, o mais hábil da antiguidade. Ain­da sentimos os ecos de todo o ruído que fez. Sabia subir ao palco e declamar as suas iras. Não introduziu ele no mundo greco-romano um tom de feira? Os sábios do seu tempo recomendavam o silêncio, a re­signação, o abandono, coisas impraticáveis; mais hábil, S. Paulo trou­xe, pelo seu lado, receitas aliciantes: das que salvam a canalha e des­moralizam os espíritos delicados. A sua vingança sobre Atenas foi completa. Se tivesse triunfado na cidade, talvez os seus ódios se tives­sem moderado. Nunca um fracasso teve consequências tão pesadas. E se somos pagãos mutilados, fulminados, crucificados, pagãos trespas­sados por uma vulgaridade profunda, inesquecível, uma vulgaridade de dois mil anos, é a esse fracasso que o devemos.

Um judeu não-judeu, um judeu pervertido, um traidor. Daí a im­pressão de insinceridade que se desprende dos seus apelos, das suas exortações, das suas violências. É suspeito: mostra-se demasiado con­vencido. Não sabemos por onde lhe pegar, como defini-lo; colocado numa encruzilhada da História, sofreu múltiplas influências. Depois de ter hesitado entre diversas vias, acabou por escolher uma, a boa. Os seres da sua espécie jogam pelo seguro: obcecados pela posterida­de, pelo eco que os seus gestos suscitarão, quando se sacrificam a uma causa é como vítimas eficazes.

Quando já não sei quem destacar, abro as Epístolas e em breve me sinto descansado. Ali está o meu homem. Põe-me em transe, faz-me tremer. Para o odiar de perto, como seu contemporâneo, faço tábua rasa de vinte séculos, e sigo-o nas suas digressões; os seus sucessos de­sencorajam-me, os suplícios que lhe infligem enchem-me de satisfação. Viro contra ele o frenesim que ele me comunica: infelizmente não era assim que o Império agia!

Uma civilização apodrecida pactua com o seu mal, ama o vírus que a corrói, deixa de se respeitar, permite que um S. Paulo circule... Fa­zendo-o, confessa-se vencida, carunchosa, acabada. O cheiro da carne podre atrai e excita os apóstolos, coveiros cheios de cobiça e de loqua­cidade.

Todo um mundo de magnificência e de luz cedeu perante a agressi­vidade desses «inimigos das Musas», desses loucos que ainda hoje nos inspiram um pânico temperado pela aversão. O paganismo tratou-os com ironia, arma inofensiva, demasiado nobre para vencer uma horda insensível às subtilezas. O homem delicado que raciocina não pode enfrentar o beócio que reza. Preso às alturas do desprezo e do sorriso, sucumbirá ao primeiro assalto, porque o dinamismo, privilégio da es­cória, vem sempre de baixo.

Os horrores antigos eram mil vezes preferíveis aos horrores cris­tãos. Esses cérebros febris, essas almas cheias de remorsos estranhos, esses demolidores lançados contra o sonho de amenidade de uma so­ciedade tardia, maltratariam as consciências até as transformarem em «corações». O mais competente de todos estes assaltantes aplicou-se à sua tarefa com uma perversidade que, de início, assustou os espíritos, mas que iria depois marcá-los, submetê-los e associá-los a uma empre­sa inominável.

O crepúsculo greco-romano merecia, contudo, outro inimigo, outra promessa, outra religião. Como poderemos admitir a sombra de um progresso quando pensamos que os fracos cristãos conseguiram sem dificuldade sufocar o estoicismo? Se este último tivesse conseguido propagar-se, apoderar-se do mundo, o homem teria resultado, ou qua­se. A resignação, tornada obrigatória, ter-nos-ia ensinado a suportar as nossas desgraças com dignidade, a fazer calar as nossas vozes, a en­carar friamente o nosso nada. Teria desaparecido a poesia dos nossos costumes? Ao diabo, a poesia! Em troca, teríamos adquirido a facul­dade de suportar as nossas provações sem um gemido. Não acusaría­mos ninguém, não condescenderíamos nem com a tristeza, nem com a alegria, nem com o remorso; reduziríamos as nossas relações com o universo a um jogo harmonioso de derrotas; viveríamos como condena­dos serenos; não imploraríamos nada à divindade, quando muito far-lhe-íamos uma advertência... Não era possível. Atacado por todos os lados, o estoicismo, fiel aos seus princípios, teve a elegância de morrer sem se debater. Uma religião instala-se sobre as ruínas de uma sabe­doria: as manobras da primeira não convêm de maneira alguma à se­gunda. Os homens hão-de preferir sempre desesperar de joelhos do que de pé. São a sua cobardia e a sua fadiga, a sua incapacidade de se elevarem até à ausência de consolações, disso se orgulhando, que neles aspiram à salvação. Quem morre escoltado pelas esperanças que o fizeram viver cobre-se de desonra. Que as multidões e os autores de discursos rastejem em direcção ao «ideal» e nele se afundem! Mais do que um dado, a solidão é uma missão: elevar-se até ela e assumi-la é renunciar a essa baixeza que sustenta o sucesso de qualquer empreen­dimento, religioso ou não. Recapitulemos a história das ideias, dos gestos, das atitudes: veremos que o futuro foi sempre cúmplice da tur­ba. Não se prega em nome de Marco Aurélio: como este se dirigia apenas a si próprio, não teve nem discípulos nem sectários; e contudo, não pararam ainda de construir-se templos onde certas Epístolas são citadas até à saciedade. Enquanto assim for, perseguirei com o meu rancor àquele que tão astuciosamente soube interessar-nos pelos seus tormentos.

E.M. Cioran

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