quarta-feira, 17 de junho de 2015

OUTROS CONTOS

«É que somos muito pobres», por Juan Rulfo.

«É que somos muito pobres»
Conto de Juan Rulfo

535- «É QUE SOMOS MUITO POBRES»

[Excerto]

Aqui vai tudo de mal a pior. Na semana passada morreu a minha tia Jacinta, e no Sábado, quando já a tínhamos enterrado e começava a abalar-nos a tristeza, começou a chover como nunca. Ao meu papá isso irritou-o, porque toda a colheita de cevada estava a secar na eira. E o aguaceiro chegou de repente, em grandes ondas de água, sem sequer nos dar tempo para esconder nem que fosse um pequeno molho; a única coisa que pudemos fazer, todos os da minha casa, foi ficarmos arrimados uns aos outros debaixo do telheiro, vendo como a água fria que caía do céu queimava aquela cevada tão recém-cortada.

E só ontem, quando a minha irmã Tacha acabava de fazer doze anos, soubemos que a vaca que o meu pai lhe ofereceu para o dia do seu aniversário tinha-a levado o rio. (...) Foi ali que soubemos que o rio tinha levado a Serpentina, a vaca que era da minha irmã Tacha porque o meu papá lha ofereceu no dia do seu aniversário e que tinha uma orelha branca e outra avermelhada e muito bonitos olhos. (...) Nunca vi a Serpentina tão atarantada. O mais certo é ter vindo ainda a dormir para se deixar matar assim sem mais nem menos. A mim muitas vezes tocou-me acordá-la quando lhe abria a porta do curral, porque senão, por vontade dela, ali estaria o dia inteiro com os olhos fechados, bem quieta e suspirando, como se ouvem suspirar as vacas quando dormem.

E aqui deve ter acontecido isso, adormeceu. Talvez se tenha lembrado de acordar ao sentir que aquela água pesada lhe batia nas costelas. (...) Talvez tenha bramado pedindo que a ajudassem.
Bramou só Deus sabe como.

Eu perguntei a um senhor, que viu quando o rio a arrastava, se não tinha visto também o bezerrinho que andava com ela. Mas o homem disse que não sabia se o tinha visto. (...) O problema que há na minha casa é o que poderá acontecer no dia de amanhã, agora que a minha irmã Tacha ficou sem nada. Porque o meu papá com muito trabalho tinha conseguido a Serpentina, ainda ela era uma vitelinha, para dar à minha irmã, a fim de que ela tivesse um capitalzinho, e não se tornasse puta como fizeram as minhas outras duas irmãs, as maiores. (...)

A minha mamã não sabe porque é que Deus a castigou tanto dando-lhe umas filhas assim, quando na sua família, da sua avó para cá, nunca houve gente má. (...) Quem sabe de onde lhes viria, a esse par de filhas suas, aquele mau exemplo. (...) E cada vez que pensa nelas, chora e diz: «Que Deus as ampare às duas.»

Mas o meu pai alega que aquilo já não tem remédio. A perigosa é a que fica aqui, a Tacha, que vai como tronco de pinheiro, cresce e cresce e já tem uns princípios de seios que prometem ser como os das suas irmãs (...) E a Tacha chora ao sentir que a sua vaca não voltará porque lha matou o rio. (...) Pela sua cara correm jorros de água suja como se o rio se tivesse metido dentro dela.

Eu abraço-a tentando consolá-la, mas ela não percebe. (...) Da sua boca sai um ruído semelhante ao que se arrasta pelas margens do rio (...) O sabor a podre que vem de lá salpica a cara molhada da Tacha e os dois peitinhos dela mexem-se de cima para baixo sem parar como se de repente começassem a inchar para começarem a trabalhar pela sua perdição.

Juan Rulfo

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