domingo, 7 de junho de 2015

OUTROS CONTOS

«Um Amor de Cão», por Maria Velho da Costa.

«Um Amor de Cão»
A Menina e o Cão/ Paula Rego

526- «UM AMOR DE CÃO»

Myra atravessou os carris desocupados em direcção ao mar. Cresciam ervas e tojo nas juntas e as traves e ferros estavam negros das marés vivas sujas de crude. O céu estava baixo e muito escuro. Havia estrias roxas e verdes na distância branca e pareciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se para engolir a terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver aquele assombro. Se corresse por ali adentro ninguém daria com ela nunca mais. Assoou-se à bainha da saia e limpou o resto da cara à manga do casaco de malha. Correu com os braços abertos, um sapato em cada mão, em direcção ao bando de gaivotas poisadas. Gritaram muito e revoaram iradas por cima da cabeça dela, mas não a atacaram. A mãe não teria razão, ou seria na terra dela. Outros mares, outros ares.

Começou a chover, primeiro gotas grossas, depois fios finos e cerrados. Tudo brilhava. Era como vapor de luz que se levantava daquele grande corpo de água a rugir. Myra começou a ficar cega de tanta chuva a bater-lhe na cara e a escorrer pelo pescoço. Era como chorar sem gritos. Correu para o barracão onde brincara de escondidas nesse primeiro Verão em que ainda só falava a língua de brincar com os outros, com os olhos, gestos e risos. Correu depressa, saltitando entre detritos, algas mortas que chiavam, baba de espuma amarela que se abatia na chuva.

Estava muito escuro e a água estalava com força atroadora nas chapas de zinco do tecto. Myra fechou a custo o tramelo enferrujado. Doíam-lhe as mãos e os braços de proteger a cabeça da última sova. Ficou na escuridão, até os olhos se habituarem às lâminas de luz das frinchas nas tábuas. Cheirava a salmoura, bafio, peixe estragado, cordame e óleo. Junto às paredes estavam ensarilhados ao alto os paus das barracas, panos de tela desbotada, redes com boias de vidro, bidons pretos, latas, contentores de plástico esventrados, lixo da praia e do mar, O chão pegava-se aos pés, uma areia imunda e húmida. Com o mundo a desabar por cima da cabeça, Myra sentou-se num molho de corda que lhe picava as nádegas e começou a chorar de aflição; nunca chegaria a casa a tempo de secar antes deles virem, pela noite. Ia apanhar de novo, da ira e do medo.

O latido uivado foi a primeira coisa que a alertou. Depois brados, berros e risos trazidos na ventania e abertas nas águas e rebentação, já muito perto. Myra escondeu-se atrás de um bidon, a cara inchada contra o alcatrão, os olhos arregalados de novo terror, a respirar o menos que podia, o coração a bater por todos os lados.

Dois rapazes grandes entraram com estrondo a arrastar numa corrente um cão que gania e ladrava rouco. Com meio olho, Myra viu o cão a sacudir-se com esforço. O pêlo espirrava água e sangue. Depois atirou-se para o chão e ali ficou. Puxaram-no para um canto com algum cuidado e incentivo, amarraram a corrente e taparam-no com uma manta que sacudiram da água. Disseram-lhe que era um grande cão, o melhor de todos, riram a lembrar a goela aberta do outro a espernear à morte e disseram ao cão que ficasse. Eles logo voltariam, que ele valia mais que o peso em ouro. Ele ficou. Riram-se mais e fecharam o tramelo de fora com toda a força. Ao longe ainda bradavam, rapidamente ao longe, corriam.

A chuva abrandou. Pingolejava agora em tampas, fundos de alguidar e latas de zinco. Myra saiu do esconderijo de rojo, devagar. O cão não era dos maiores, mas era grande. Tinha o peito muito ancho e encorpado, o pêlo curto e malhado de branco e camurça.

Os olhos eram preto-vivo, muito para cada lado da cabeça achatada e larga. Parou de lamber-se e ficou fito nela, todo quieto e inquieto nas narinas grandes e pretas. Myra reconheceu-lhe a traça, de há tantos anos e tão longe terra: eram os cães de matar cães, o pior cão do mundo. O mais valente, até à demência de morrer de raiva. Atarracado de força, nobre e tão mau.

Continuou a aproximar-se de gatas. O animal sem ruído, sem fazer menção de levantar-se, mostrou-lhe as presas. Myra, respeitosa, quebrou o intenso laço do olhar e acocorou-se, os braços entre as pernas, à distância da corrente. O bicho deitou a cabeça entre as patas, desceu as orelhas curtas, uma delas esfacelada, fechou o beiço, uma chaga aberta da orelha até à comissura da grande boca. A luz coada ia esmorecendo. Na meia penumbra

Myra deixou-se amolecer, gemeu. O cão voltou a olhá-la e ganiu um ganido de cachorro, um gemido. A omoplata ainda sangrava de outra ferida que brilhava no escuro, um coalho preto que escorria devagar até à ponta da manta. Myra, sem se aproximar deu-lhe o nome que lhe ouvira chamar e começou a falar-lhe de manso na sua língua materna. Desgraçado, desgraçado Rambo, pobrezinho de ti. O animal, sem se mover, esboçou um trejeito de cauda. Deixou de a fitar e recomeçou a lamber-se. 

Com mil cuidados lentos, Myra tirou do bolso o pão com a salsicha que roubara da lata da casa comum e pô-lo bem perto do nariz do cão, em cima da manta. Toma, come cão, depois arranjamos mais. O cão virou a cabeça de lado para abocanhar do beiço intacto, soergueu o tronco e começou a comer. Myra levantou-se e foi buscar uma tampa de lata com água da chuva.

Foi então que Myra pensou que se tinha urinado de medo. As pernas estavam pegajosas, molhadas por dentro. Apalpou-se e viu pela mancha escura nos dedos que era sangue vivo. Havia de ser hoje, a primeira vez, disse sem medo para o cão. Pousou-lhe a água diante. Ele levantou-se e deixou-a chegar-se. Bebeu, a cauda comprida claramente grata. O rabo estava a saber sorrir. Depois começou a lamber-lhe um dos pés nus, o artelho encardido, e Myra pousou-lhe a mão no grande cachaço com muita doçura e determinação. Fomos feitos um para outro, Rambo. Agora temos de fugir antes que eles venham.

Maria Velho da Costa

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