sábado, 3 de dezembro de 2016

OUTROS CONTOS

«As Saudades que tenho de Inácia», por Jorge Marmelo.

«As Saudades que tenho de Inácia»
Mulher de cesta à Cabeça/ Malangatana

928- «AS SAUDADES QUE TENHO DE INÁCIA»

Não me lembro se já falei de nha Nácia. Mas, se já disse, repito: não há mulher mais gostosa nesse mundo todo. Nha Nácia é fiambre da perna. Pxa bem é com ela só, mesmo que mais ninguém seja suficientemente insensato para afirmar uma coisa assim. Nha Ná- cia é fêmea só para homem que não tenha medo de cara feia, pois também não deve haver criatura mais desagradável à vista. Horrível mesmo. Desdentada, engelhada, porca e com mais bigode do que muito bazófio que anda por aí a presumir nos bares. Fuma cachimbo de lata e cheira mal das partes, mas faz um amorzinho sab como mais ninguém. É por isso que, vai-não-vai, dou por mim a suspirar e a pensar nela. Ah!, nha Nácia, nha Nácia… Já não sei bem como foi que a conheci. A idade é assim mesmo — um fulano recorda-se de certas coisas como se tivessem sido trás-anteontem e esquece as outras todas como se nunca tivessem acontecido. Devo tê-la visto por aí na lida, naquilo que era a lida do antigamente, e ter-lhe falado ou dito alguma coisa desagradável. Os rapazes sempre tiveram esta forma de lidar com as mulheres feias. Escarnecem e humilham. No meu tempo, eu não era diferente de qualquer um. Derramava mel nos calcanhares das crioulinhas bonitas, todo manhas e gracejos, e troçava das que o não fossem. T’arrenego, temporal. Malparida. Vesga. Noite escura. Bode. Cara de atum. Eu sei lá. Chamava-lhes o que calhasse e, por isso, também devo ter dito das boas a Inácia quando ela passava. 

Quando somos moços, e mesmo depois disso, avaliamos tudo pela superfície e precipitadamente. Os olhos cobiçam coisas que não dão conta de satisfazer o corpo e só muito mais tarde se vem a entender o engano. Quando se entende. O equívoco, às vezes, dura a vida toda e nunca se chega a perceber os enredos completos do assunto; que uma coisa é uma coisa, e que a outra coisa é bem diversa. Bem sei. Mas Inácia tinha cara de homem escarrado e cuspido antes mesmo de ter passado a tragar cachimbo e quando o bigode dela era ainda só um buço farto. Não se podia imaginar, só de olhar para ela, os segredos que tinha. Era preciso experimentar. Mas isso ninguém desejava. Ninguém a queria. Nem eu. O que me aconteceu com ela foi uma espécie de acidente, um imprevisto. Agora não a procuro mais. Vejo-a apenas quando passa nas ruas de pó e é uma coisa tremenda: continua feia, mais feia ainda do que sempre foi, se isso for possível, e tem um ar consumido, com as chuchas descaídas e as costas curvadas. O lenço claro em volta da cabeça. O cachimbo de lata fumegando na boca arrepanhada e quase sem dentes. Os olhos sem luz e rodeados de rugas fundas. A grande verruga peluda no queixo. E um bigode que seria mais farfalhudo do que o meu, se o usasse. Mas não uso. 

Não corro o risco de ficar mal visto perto de nha Nácia. Ensaboo a cara todas as manhãs e raspo-a com a lâmina. Lavo as orelhas, o pescoço, o cabelo, e penteio-me com brilhantina. Fui sempre um homem de certas vaidades e até um pouco galanteador. Não me faltaram mulheres nesta vida, quero dizer. Mas não o digo para me gabar. As coisas são como são e, não sendo muito velho nem muito feio, um homem lavado e penteado, e com dinheiro no bolso, sempre consegue desenrascar-se. Fêmea é coisa que o mundo tem mais abundantemente. Só que nem todas prestam e não há mais nenhuma como Inácia, disso tenho certeza. Olho, pois, para ela quando passa, e baixo a cabeça, em parte para não ter de encará-la, em parte por ter dó e vergonha de ela ser como é, ou de ser o mundo apenas um reino de aparências e convenções. Nha Inácia costumava passar na rua principal com um carrego de gravetos equilibrado na cabeça, cachimbando e com o punho livre posto na cintura. Não sorria nunca, como se estivesse empenhada em não agradar a ninguém. A vida dela, tanto quanto eu podia ver, esgotava-se naquilo: chupar o cachimbinho de lata e acartar coisas na cabeça, feixes de lenha ou latas de água, bacias, sacos de grão. Tanto que nhô Francisco, um português, até inventou um dia uma modinha para cantar quando ela passava com os seus carregos e fazer rir o pagode. Era mais ou menos assim: Lá vem nha Nácia acartando E para ela não olha ninguém; Por muito que a lenha lhe pese não se lhe ouve um lamento. Mas por muito que ela carregue Ninguém lhe quer casamento. Era um pândego, o nhô Francisco, e não havia, naquela época, quem lhe fizesse frente nas rimas. Nem mesmo o Armando Zeferino da venda, que ganhou fama fora das ilhas desde que a Cise foi pelo mundo adentro a cantar Sodade, era capaz de se medir com o português. Arre. Parecia que tinha sempre um verso pronto na ponta da língua e, por causa disso, também nunca lhe faltavam as mulheres. As bandidas pelam-se por um poeminha e por um pedaço de pele clara, ai não. Na porta da venda, às horas mortas da ilha, que então eram muitas e continuam sendo incontáveis, o português ficava gabando-se discretamente do que tinha feito, dos seus triunfos amorosos, e do que havia de fazer ainda. Quando alguma mulher mais vistosa passava adiante, sorrindo de esguelha para ver se era notada, logo o sujeito que estivesse mais perto acotovelava nhô Francisco e apontava a ditosa com um gesto do queixo. Quase sem olhar quem passava, ele declarava baixinho, num tom de voz neutro, “marchava”, ou então, “já marchou”, que era a maneira que ele tinha de dividir o mundo em duas metades distintas. E dava de ombros como se aquilo fosse coisa pouca. Uma vez, lembro-me bem, Zeca, o negrinho de nhô Nhelas, acotovelou o português quando Inácia passava com um carrego na cabeça. Rimos. Nhô Francisco sorriu também, fez uma pausa dramática e, por fim, lavrou a sentença: «Já marchou.» E atirou uma sapatada na coxa, gargalhando muito alto e nós todos com ele, como se fosse paródia só, coisa impossível e impensável. Mas agora, às vezes, dou por mim a cismar se foi mesmo uma piada aquilo de o finado Xico ter comido nha Nácia, ou se o fez de verdade e provou do bem bom que ela possuía entre as coxas quando era mais nova (agora já não sei). E quantos somos, afinal, os secretos amantes dela. E se somos tão secretos assim. Estou, porém, divagando e não contei ainda nada que preste, nem expliquei que enleios selvagens há no amor de nha Nácia para ter afirmado o que afirmei. E é tal qual disse. Quem me conhece sabe que não sou homem de brincar quando o assunto é sério, sobretudo sendo mulher o assunto mais grave de todos. Inácia passava todos os dias para trás e para diante e parecia sempre indiferente ao descaso e à mofa que o seu ir e vir provocavam. Creio que era sincera nisso. Os homens não lhe interessavam, ou não tinha interesse nenhum na opinião que sobre ela tivessem. Não é bem a mesma coisa — apenas parecia. E confundiu-me bem. Acho que uma vez, por pilhéria, comentei que ela devia ser a cabrita mais ruim da ilha. «É mais feia e tem mais barbela que qualquer outra». Os homens sorriram e eu achei que tinha dito uma coisa muito espirituosa. «E não tenho memória de ter visto alguma cabra a fumar cachimbo», acrescentei. Nhô Francisco, talvez porque sempre gostava de ser do contra, ou porque já tivesse comido Inácia nessa altura, se é que comeu, deixou que as gargalhadas se extinguissem e avisou-me de que não devia avaliar o cabrito pela barba que tem, mas pela macieza da sua carne. Sentencioso como de costume, ainda acrescentou aquele dito sobre as panelas chamuscadas e amassadas fazerem a comida mais gostosa. Deixá-lo falar, pensei eu. Céu azul é que faz tempinho bom. Era novo, estava enrabichado por Elida do Rosário e não queria saber de mais nada enquanto não desse conta de beber na cabaça dela e de lhe apertar os predicados todos. Moça bonita estava ali e eu teria casado com ela (se ela quisesse). Mas Elida não quis e nem um beijinho me deu. Safada. O destino, porém, não se distrai: ela veio a casar às pressas com o Setembrino do Juncalinho, que tinha bicicleta e uma voz fatal para atacar as mornas mais açucaradas. E depois pariu seis filhos dele e está mulher gorda e feia — feia de um modo diferente daquele que Inácia tem de ser feia, mas é quase a mesma coisa. Fêmea velha e feia é tudo igual — e isto o Setembrino também deve saber muitíssimo bem, que cada qual nasce para a cruz que lhe cabe carregar e não há como escapar disto. Inácia, porém, e se calhar já o disse, era feia como os trovões mesmo quando era nova. Ninguém a queria para coisa nenhuma que não fosse acartar carregos de um lado para o outro, que para isso ela servia bem. Como outro homem qualquer. Dava-me um certo dó vê-la passar para trás e para diante, curvada e horrível sob o peso daquelas trouxas, mas isto é cá coisa minha. Custam-me as injustiças do mundo. E ainda não encontrei coisa mais desigualmente distribuída do que a feiura e o seu oposto. 

Quando se nasce como nha Nácia nasceu, parece que um demónio qualquer se empenha em rodear a pessoa de uma quantidade absurda de defeitos, um pouco como se fosse um aviso para quem a visse: tomai cuidado que também pode suceder-vos, nesta geração ou noutra qualquer. Uma vez, se não me falha a memória, até disse ao meu compadre Aníbal: «Coitado de quem vem ao mundo condenado pelos pecados que não cometeu». O meu compadre, sendo um homem prático e ponderado, quis desenganar-me do poder da providência e comentou que pecado nenhum, por mais cabeludo que fosse, justificaria um castigo tão severo como o de Inácia, do mesmo modo que não há bem nenhum precedendo a beleza ambulante que, às vezes, desfila diante dos nossos olhos enquanto estamos preguiçando à porta da venda. «Se existisse um deus moldando as pessoas do mundo, ele seria só o mais desastrado dos oleiros», disse nhô Aníbal. Pensando melhor, tive que lhe dar razão. Que remédio. Mas agora, de vez em quando, duvido de uma coisa e da outra. Cogito, enfim, se não haverá alguma verdade quando se diz que deus, existindo, dá com uma mão aquilo que tira com a outra; se o amor gostoso de nha Nácia, e a força que tem para carregar pesos à cabeça, não podem ser a recompensa que lhe coube pela má distribuição dos outros predicados todos. É uma troca, se virmos bem, quase como outra qualquer. Eu mesmo, que em novo não era feio, sempre fui um bocado estúpido — ao ponto de, por exemplo, ter andado enrabichado pela Elida do Rosário, que nem sequer olhava para mim, e de ter tido vergonha de ser visto na rua com Inácia em vez de lhe ter pedido namoro como, se calhar, devia ter feito, mesmo sendo ela feia e suja. Mas viver é arrepender-se (ainda que seja demasiado tarde). Agora que sei estas coisas, que as aprendi com os erros e com os anos, já estamos ambos muito velhos, Inácia e eu, para voltarmos atrás e sermos aquilo que não fomos quando ainda havia tempo, e eu não sei sequer se ela me quereria ou se já então, naquele tempo, a vida lhe mostrara que não devia desejar mais do que aquilo que podia ter, ou que ela achava que estava ao seu alcance. Ainda hoje não sei, para dizer a verdade toda, se a comi ou se foi ela que me comeu a mim; qual dos dois, Inácia ou eu, gostou mais do amor que fizemos à pressa, escondidos, mordendo-nos um ao outro para que não pudessem ouvir-nos enquanto gemíamos e arfávamos como gatos com cio (se os gatos pudessem sentir prazer e ficar doidos como eu fiquei, desvairado, fora da razão), se a memória não me traiu já e não acabei imaginando coisas que não são tal como sucederam. Pode ter acontecido. Posso, com o passar dos anos, enquanto a solidão em que vivo se adensava, ter chegado a supor que as chuchas de nha Nácia, debaixo das roupas porcas, eram mais perfeitas e mais rijas do que alguma vez tenham sido, e recorde agora movimentos loucos que o quadril dela não fez. Mas também é possível que, naquela época, Inácia nem sequer fosse tão feia assim e que, muito simplesmente, a memória que guardei não seja, de facto, uma memória; que seja apenas um reflexo da mulher feia e muitíssimo acabada que eu ainda vejo passar de vez em quando diante da porta da venda, debaixo dos mesmos carregos de sempre e fumando o seu cachimbinho de lata, velha e feia que eu sei lá, porca também, mas que é a minha Inácia, o meu velho amor secreto e breve. Não sei quando foi que comecei a ter saudades de nha Nácia — do cheiro de animal que ela tinha no corpo e do seu modo desabrido de pxa onde calhasse, meio vestida e às pressas, como se, para além de feia, fosse também muito doida, desvairada e canalha. Houve uma noite, disso recordo-me, em que estava a fazer um amorzinho bom, tranquilo, com a minha defunta senhora. O normal. Eu amava Eunice e respeitava-a. Era uma boa mulher, apesar daquele problema nos ovários que acabou por levá-la ainda nova, matando-a de tristeza mesmo enquanto ainda estava viva. Mas eu amava-a como suponho que se deva amar uma mulher: chegava a horas para o jantar, fazia por andar lavado, evitava beber muito grogue, entregava-lhe a féria e procurava-a na cama (pontualmente). Vivíamos felizes à nossa maneira e acho que foi assim até ao fim. Mas, naquela noite, e a partir daí em outras noites, eu pxava mais ela e pensava em Inácia, nas chuchas de Inácia e no seu jeito maluco de foder como um bicho, de gozar e fugir logo a seguir, não sei se por vergonha ou se por outra teima qualquer. Simplesmente fugia segurando as roupas sujas com as mãos enquanto desaparecia no escuro, correndo. Eu não me importava. Não me atreveria, de todo o modo, a atravessar a vila de mão dada com ela, nem sequer desejava ser visto caminhando ao seu lado. Mas era nela que pensava muitas vezes quando fazia o amor com Eunice, e também depois, quando nha Nicha se foi e eu fiquei sozinho. Agora passo aqui muito tempo na venda. Jogo dominó e cartas, e bebo um bocadinho de grogue para esquecer a desolação que a vida é. Somos cada vez menos e todos velhos. Já quase ninguém se volta para ver quando Inácia passa. Só eu. Nhô Chico também já morreu e mais ninguém inventa versos canalhas quando ela vai e volta com os carregos dela.

Jorge Marmelo

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